
Atualmente alguns pacientes com câncer de próstata podem ser considerados como de muito baixo risco (bem diferenciados – Gleason 6, com volume limitado e PSA baixo), e podem fazer parte de um seleto grupo em que não são tratados, mas acompanhados através de protocolos de vigilância ativa (ou em inglês, Active Surveillance).
Segundo destaca o Dr. Bruno Hurtado, médico urologista da equipe Urologia Vida:
Com o melhor entendimento do câncer de próstata, sabemos que alguns tipos de tumores têm característica bastante indolente, e dificilmente levarão à metástases e ao óbito. Nesses casos, o tratamento (seja com cirurgia ou radioterapia) não só pode não trazer benefícios em relação à sobrevida, como pode levar a sequelas indesejadas, como a incontinência urinária e a impotência sexual. O protocolo de vigilância ativa visa então evitar o supertratamento desses doentes e seus possíveis efeitos adversos.
A doença é então monitorada com exames periódicos (PSA e toque retal) e a biópsia é repetida de tempos em tempos. Durante o seguimento, os tumores que crescerem ou exibirem características agressivas serão tratados, enquanto os considerados estáveis e com crescimento limitado, poderão continuar o acompanhamento.
Mas existe embasamento jurídico que dê suporte à tal tipo de protocolo sem que isso implique qualquer problema ao médico acaso a doença tenha evolução desfavorável?
Entendo que sim.
Como já dito, a vigilância ativa consiste no monitoramento do câncer pequeno e de baixo risco que se popularizou nos últimos anos, caracterizada pelo acompanhamento periódico do tumor, sem que se faça uma cirurgia para sua retirada ou radioterapia, mas mantendo a possibilidade de um tratamento curativo quando for preciso.
O médico é profissional liberal. Existe grande diferença entre profissional liberal e autônomo. De acordo com Francisco Antonio Feijó, ex-presidente da Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL), enquanto o termo autônomo é usado para indicar quem trabalha por conta própria sem vínculo empregatício, o termo liberal é utilizado para designar aquele profissional que possui total liberdade para exercer a sua profissão.
Em seus dizeres:
“Ele pode constituir empresa ou ser empregado, no entanto, considera-se profissional liberal somente aqueles profissionais que possuam nível universitário ou técnico, que estejam registrados em uma ordem ou conselho profissional, sendo, pois, habilitados a exercer determinada atividade, o que os deixam com uma responsabilidade maior pelo produto de seu trabalho”
A definição de profissional liberal também pode ser extraída do estatuto da CNPL, que, em seu artigo 1º, parágrafo segundo, dispõe:
“(…) considera-se profissional liberal aquele legalmente habilitado a prestação de serviços de natureza técnico-científica de cunho profissional com a liberdade de execução que lhe é assegurada pelos princípios normativos de sua profissão, independentemente de vínculo da prestação de serviço”.
Como se verifica, a definição de profissional liberal enquadra-se perfeitamente à profissão do médico. Portanto, sendo profissional liberal, ele possui liberdade total no exercício de sua profissão.
Tal questão é tão relevante que o próprio Código de Ética Médica tratou de deixar esta liberdade muito bem explicitada ao discorrer sobre os princípios fundamentais que permeiam a profissão:
“Capítulo I
Princípios fundamentais
VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia , não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje , excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional , nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.”
Por óbvio que a liberdade no exercício da profissão não extirpa do médico a obrigação em observar os outros princípios fundamentais que deve respeitar. Assim, ao exercitar alguma de suas prerrogativas (tal como a liberdade), deve o médico sempre estar vigilante para que não sejam vulnerados outros princípios. De todos, o mais importante é o compromisso com a saúde e bem estar do paciente, também elevado à categoria de princípio fundamental, consoante disciplina o Código de Ética Médica:
“Capítulo I
Princípios fundamentais
II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional
V – Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente.
VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício . Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”.
Do acima exposto, extrai-se a garantia do médico em exercer a sua profissão com total liberdade e autonomia, desde que tal exercício não implique em desrespeito a nenhum dos outros princípios insculpidos no Código de Ética Médico.
Se assim o é, é lícito inferir que o médico, ao avaliar um paciente, tenha ampla liberdade em estabelecer qual a conduta adotará, desde que se utilize de todo o seu conhecimento e capacidade profissional para tomar esta decisão e realmente esteja convicto que aquela é a melhor opção de tratamento.
Neste sentir, HÁ EMBASAMENTO JURÍDICO PARA QUE O MÉDICO OPTE EM REALIZAR VIGILÂNCIA ATIVA em detrimento de cirurgia ou radioterapia para o tratamento de tumores pequenos e de baixo risco, e isto se dá em função da ampla liberdade que ele possui em exercer a sua profissão, o que inclui, por óbvio, o processo de estabelecer livremente qual a conduta a ser adotada no tratamento de seu paciente.
Por óbvio, é mais seguro ao médico que sua decisão esteja calcada não apenas em suas convicções pessoais, mas também na literatura médica, de forma a afastar riscos em ser responsabilizado caso a conduta escolhida não tenha uma evolução tão favorável, e, posteriormente, haja uma irresignação do paciente que resulte na distribuição de uma demanda judicial. Mesmo nestas hipóteses, desde que o médico tenha tomado as devidas precauções ao estabelecer a conduta, pode-se inferir que a possibilidade dele ser condenado em ressarcir o paciente é remota.
Explica-se:
Prima facie, rememore-se que a medicina deve ser enxergada como obrigação de meio, que se traduz como sendo aquela profissão em que o profissional não está obrigado a alcançar um resultado específico e determinado, como por exemplo: a cura. (exceção feita à cirurgia plástica, onde o paciente, ao procurar o médico, já indica exatamente qual o objetivo almeja alcançar com o procedimento que irá realizar).
Portanto, excetuada a área de cirurgia plástica, a obrigação do médico junto ao paciente cinge-se em que ele aplique toda sua técnica, conhecimento e habilidade a fim buscar a melhora do quadro apresentado pelo paciente, mas sem garantir resultados, pois estes dependem de outros fatores, como a resposta do paciente ao procedimento, o tipo de moléstia sofrida, entre outros.
Pois bem. Imagine-se um caso hipotético em que um paciente possua um tumor pequeno e de baixo risco onde o médico tenha optado em realizar conduta vigilante, mas que, posteriormente, tenha havido evolução do tumor com necessidade de intervenção mais agressiva. Nesta hipótese, pode ser que aquele paciente – sob justificativa de que o médico deveria ter seguido a conduta mais agressiva desde o início – acione o Poder Judiciário inferindo que, ao optar pela conduta vigilante, tal decisão lhe gerado prejuízo passível de ser indenizado.
Inicialmente, bom se destacar que a obrigação em indenizar é decorrente do instituto da responsabilidade civil, e está disciplinada nos artigos 186 e 927 do Código Civil que impõem, em linhas gerais, que aquele que pratica ilícito e gera prejuízo à outrem, é obrigado a indenizar.
Contudo, a doutrina jurídica assentou entendimento de que para se caracterizar a responsabilidade civil, faz-se necessário comprovar a existência de três pressupostos: i) conduta do agente (ação, ou omissão) que tenha gerado um dano, ii) o dano em si, e iii) nexo de causalidade, ou seja, um liame existente entre a conduta adotada e o evento danoso.
A caracterização de tais elementos não é fácil, sendo possível afirmar que ao distribuir um processo alegando a ocorrência de “erro médico”, o autor da demanda, de início, já terá um grande trabalho para comprovar que merece ser ressarcido. E não é só.
Somada à dificuldade inicial em se caracterizar os requisitos ensejadores da responsabilidade civil aliado ao fato da medicina tratar-se de profissão de meio (onde não é lícito que o paciente reivindique a “cura” para sua moléstia), para os casos em que se pretenda imputar a responsabilidade civil a um profissional liberal (tal qual o médico), além da comprovação dos três pressupostos acima citados, há ainda a necessidade de comprovação de um 4º pressuposto, qual seja: a culpa.
Tal necessidade emana do próprio Código de Defesa do Consumidor (§ 4º do art. 14):
“§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.
Digno anotar que para que o paciente logre êxito em seu processo, não basta que comprove a existência de um ou outro dos requisitos acima apontados. Ao contrário, ele necessita comprovar a existência de todos os 04 (quatro) concomitantemente, tornando-se ainda mais árdua a sua tarefa.
Não é por outro motivo que em demandas cujo objeto circunde eventual alegação de “erro médico”, invariavelmente o juiz não toma qualquer decisão sem antes realizar uma perícia técnica, que nestes casos, será conduzida por um perito que também é médico. Afinal de contas, em se tratando de discussão envolvendo eventual acerto ou desacerto de uma conduta eminentemente técnica em medicina (conhecimento que o juiz não detém), somente um outro profissional devidamente habilitado naquela profissão é quem pode realizar tal avaliação.
O perito, em suma, avaliará todos os exames e documentos médicos constantes no processo bem como as peculiaridades do caso, e, ao final, elaborará um laudo emitindo a sua opinião sobre a conduta adotada pelo médico réu. A conclusão final deste laudo é que formará o juízo de convencimento do magistrado para que possa então julgar o feito.
Portanto, se em seu laudo o expert concluir que naquele caso, a conduta de vigilância ativa estava condizente com as especificidades do caso e que foi conduzida com lastro na literatura médica (observando a forma lá estabelecida), invariavelmente não haverá condenação do médico réu, pois, ainda que restem caracterizados todos os três primeiros requisitos da responsabilidade civil, restará afastada a culpa.
Eis algumas jurisprudências neste sentido:
INDENIZAÇÃO POR ERRO MÉDICO IMPROCEDENTE – NÃO OCORRÊNCIA DE CULPA STRICTO SENSU – NÃO OCORRÊNCIA DE ERRO GROSSEIRO – NÃO COMPROVAÇÃO DO NEXO CAUSAL ENTRE A CONDUTA DO MÉDICO E AS ALEGADAS CONSEQÜÊNCIAS LESIVAS AO PACIENTE – BENEFICIÁRIO DE JUSTIÇA GRATUITA – SUSPENSÃO DA COBRANÇA DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA – APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. A indenização decorrente de erro médico só pode prosperar se provado ter o facultativo incorrido em culpa stricto sensu ou erro grosseiro, e ainda, que exista nexo de causalidade entre a conduta médica e as conseqüências lesivas à saúde do paciente. Não restando comprovados esses elementos, indispensáveis à caracterização da responsabilidade civil, vale dizer, o dano sofrido pelo paciente, a culpa ou o erro de conduta do médico, bem como o nexo causal entre um e outro, a indenização não encontra guarida na sistemática jurídica. A obrigação do médico, excluído o caso de cirurgia estética, é considerada de meio, e não de resultado. Mas, mesmo que assim não seja entendido, não haverá responsabilidade de indenizar, se o médico, a par de agir com cautela e dentro dos parâmetros técnicos, conseguir em prol do paciente o resultado esperado. Sendo a parte vencida beneficiária de Justiça Gratuita é correta a condenação ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, mas a cobrança dessas verbas fica suspensa, até que seja superada a situação de pobreza da devedora, ou até que transcorra o prazo prescricional de cinco anos. (TJ-PR – AC: 2086164 PR Apelação Cível – 0208616-4, Relator: Roberto De Vicente, Data de Julgamento: 22/10/2002, Primeira Câmara Cível (extinto TA), Data de Publicação: 31/10/2002 DJ: 6241)
INDENIZAÇÃO – Danos morais e materiais – Responsabilidade civil – Erro médico – Alegação de que o atendimento médico foi feito com negligência – Gravidez de 8 semanas, com dores abdominais e o exame de ultrassom só foi marcado para o dia seguinte – Exame que constatou a morte do feto – Laudo pericial que concluiu pelo atendimento segundo a conduta recomendada – Autora foi vítima de aborto inevitável – Realização do exame de ultrassom realizado no dia seguinte que em nada alterou o prognóstico da gestação – Ausência do nexo de causalidade – Inexistência do dever de indenizar – Sentença de improcedência – Recurso não provido. (TJ-SP – APL: 00024764020118260191 SP 0002476-40.2011.8.26.0191, Relator: Reinaldo Miluzzi, Data de Julgamento: 20/10/2014, 6ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 21/10/2014)
APELAÇÃO CÍVEL – RESPONSABILIDADE CIVIL – FÍSTULA VÉSICO-VAGINAL APÓS HISTERECTOMIA – PERFURAÇÃO NA BEXIGA EM DECORRÊNCIA DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO DE HISTERECTOMIA, EM FACE DE GRANDE MIOMA UTERINO NO ORGANISMO DA PACIENTE, ACARRETANDO INCONTINÊNCIA URINÁRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA DO MÉDICO (ART. 14, § 4º, DO CDC)- ERRO MÉDICO NÃO DEMONSTRADO – CULPA NÃO DEMONSTRADA (ART. 186 DO CC)- INEXISTÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR – SENTENÇA MANTIDA. 1. tratando-se de obrigação de meio, a responsabilidade médica é de ordem subjetiva (art. 14, § 4º, do CDC). 2. são pressupostos da responsabilidade civil subjetiva: a conduta culposa do agente, o nexo causal e o dano, e a ausência de quaisquer destes elementos afasta o dever de indenizar. 3. quando não demonstrada, a culpa a responsabilidade será afastada. (TJ-MG – AC: 10702110697373001 MG, Relator: Rogério Coutinho, Data de Julgamento: 25/09/2013, Câmaras Cíveis / 11ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 30/09/2013)
Conclui-se, portanto, pela licitude do médico em optar pela vigilância ativa em detrimento de conduta mais agressiva, sem que isto implique, necessariamente, em aumento de risco de ser responsabilizado na hipótese em que haja evolução posterior do tumor com necessidade de tratamento mais severo, desde que, ao tomar tal decisão, vigilante às especificidades do caso, tenha identificado que esta era a melhor opção ao paciente naquele momento e tenha seguido a literatura médica na condução da referida vigilância.